Uma
luz na escuridão
Como uma história de abuso na
infância ajudou a moldar o ministério do presidente da Compassion
Internacional.Por Wesley Stafford
Em um momento decisivo da minha
vida, há uns três anos, me dei conta que precisava deixar Deus redimir a
história da minha infância. Essa história foi tão dolorosa e confusa que eu passei
nada menos que 35 anos sem falar sobre ela. Dizem que as crianças têm um anjo
da guarda, mas eu cheguei mesmo a pensar que o que fora designado para me
proteger era o mais preguiçoso de todo o céu... Afinal, onde foram parar minhas
orações, meus clamores por misericórdia e socorro, que tanto fazia deitado em
meu travesseiro durante aquele período tenebroso?
Recebi meu chamado e descobri o
propósito e a missão de minha vida justamente no momento mais sombrio e
doloroso de minha existência, quando tinha dez anos de idade. Lembro-me
nitidamente de uma vela de aniversário rosa, daquelas em que é possível atear
fogo em suas duas extremidades. Ela foi acesa pelo homem que, à época, tinha
autoridade sobre minha vida. Ele era o responsável por uma escola para filhos
de missionários no oeste da África. Aquela instituição era minha casa por nove
meses de cada ano, desde que eu tinha seis anos. Minha vida inteira pode ser
dividida em duas partes: antes e depois da vela.
Naquele dia, o responsável pela
escola me fez caminhar até o refeitório, colocou-me sentado diante de meus
coleguinhas e pôs a vela em minhas mãos, acendendo-a nas duas pontas.
“Crianças”, ele nos disse, “vocês não podem servir a Deus e a Satanás, como
Wesley tentou. Não se pode acender uma vela em suas duas extremidades sem se
queimar”. Cinquenta crianças estavam petrificadas, em silêncio. Sentado naquela
cadeira, com meus joelhos tremendo, eu olhava aterrado. Por detrás das duas
chamas, via a face de meus amigos – garotos que, como eu, vinham de vilarejos e
centros missionários de todos os lugares do oeste africano enquanto seus pais
faziam a obra de Deus.
A política da missão dizia que
todas as crianças deveriam deixar seus pais ainda pequenas. Como eu, elas
experimentaram crueldades indescritíveis naquele lugar. Os dirigentes e
educadores do estabelecimento eram missionários que, penso hoje, provavelmente
fracassaram por não superar os desafios transculturais e lingüísticos do campo.
Por isso, foram incumbidas da tarefa tediosa de cuidar dos filhos dos outros
obreiros. Sem nenhuma supervisão, eles descarregavam em nós suas frustrações.
Desde cedo, por isso, aprendi que coisas terríveis podem acontecer quando
crianças são tidas como sem importância, ou como a última das prioridades. E
tenho tentado convencer as pessoas justamente do contrário.
Pesadelo – Foram quatro anos de
pesadelo. Por todos os meus dias na escola, convivi com violência. Tudo era
razão para nos fazer apanhar, desde um fio puxado no cobertor a um olho aberto
na hora de dormir. Quando comecei a estudar matemática, fiz as contas na média
e descobri que apanhava cerca de dezessete vezes por semana. Os alunos éramos
abusados não apenas física e emocionalmente, mas também espiritualmente.
Crescíamos com pavor do Deus poderoso e vingativo que nos era apresentado. As
mesmas pessoas que liam a Bíblia para nós durante o dia permaneciam nos
dormitórios durante a noite, aproveitando-se dos indefesos. Meninos mais
velhos, também vítimas, eram ensinados a como tocar sexualmente nos seus
superiores, num ambiente depravado que satisfazia os desejos e a luxúria de
homens que usavam todos os recursos físicos e psicológicos para nos calar.
Nem posso descrever a
intensidade de dor, raiva e falta de esperança que afligiam minha alma. Nas
mãos daquele homem que me torturou com a vela, eu sempre perdia. Era simples;
ele era maior e mais forte, e eu, apenas um menino. Não havia quem nos
protegesse. Não tínhamos braços paternos para os quais correr. Na escola, nós
não podíamos sequer ter fotos de nossos pais, quanto mais reclamar de saudades
de casa. Com o passar dos anos ali, percebi que já não conseguia lembrar como
era o rosto de minha mãe. Tinha medo de partir seu coração se chegasse em casa
e não a reconhecesse.
Os professores nos diziam que,
caso contássemos o que acontecia ali, destruiríamos o ministério de nossos pais
e arruinaríamos o trabalho evangelístico no continente africano. Não tínhamos
ideia de que o nosso silêncio forçado perpetuava o mal contra nós. Nossas
cartas à família eram controladas, de modo que não podíamos dar uma única pista
sobre os horrores daquele lugar. O menor sinal de rebeldia era punido com
agressões, e aprendemos a ser tão silenciosos quanto um cordeiro. Mesmo durante
os três meses em casa com nossos pais, todos os anos, não abríamos a boca.
Eu sabia de sua paixão no anúncio
do Evangelho, e eu amava meus amigos africanos. Se meu silêncio fosse garantir
sua salvação, eu estava disposto a enfrentar qualquer coisa. Na verdade, era um
africano de coração. Depois de nove meses de inferno na escola, meu coração era
sempre renovado no verão pela alegria do convício com o povo local na vila em
que vivia. As mulheres me tinham como filho. Bastava um simples arranhão numa
brincadeira para que várias mães negras me pegassem no colo e enxugassem minhas
lágrimas com seus vestidos coloridos. Na minha inocência, costumava orar a Deus
para que minha pele ficasse escura como a deles. Todas as manhãs, ao acordar,
eu checava para ver se ele havia atendido ao meu pedido. Ficava desapontado,
mas pensava: “Talvez amanhã”.
Por assim dizer, eu era o
assistente do meu pai. Juntos, levávamos o Evangelho a vilas nunca antes
visitadas por brancos. Cabia a mim espantar os pássaros das árvores, para que
seu barulho não impedisse as pessoas de ouvir sua pregação. Costumava reparar
no rosto dos africanos quando eles ouviam pela primeira vez a palavra Jesu e
via as esperanças que eram construídas por causa da chegada do Evangelho a suas
vidas. Logo, eu era um missionário também. Por isso as palavras daquele homem
naquela noite lúgubre no refeitório feriram-me mais do qualquer uma das surras
que eu havia levado naquela escola: “Wesley nos traiu. Odiabo o usou para
destruir o ministério de seus pais. Africanos irão para o inferno por causa de
Wesley”.
Código de silêncio – Tudo
aconteceu porque nas férias anteriores eu contara tudo. Estávamos no aeroporto
com outros meninos, despedindo-nos das famílias, prestes a embarcar no avião
que nos levaria de volta à África. Nossos pais seguiriam depois, de navio. No
portão, coloquei a mão de minha mãe em meu rosto. Fiquei contemplando sua face
sorridente, que me parecia tão bela. “O que foi, Wesley?”, perguntou ela,
supondo que eu chorava apenas por antecipar a saudade. “Mãe, não quero me
esquecer de como você é”, respondi. Ela também começou a chorar. Vi naquele
momento uma oportunidade de ser resgatado. “Mãe, por favor, não me mande de
volta para lá. Eles me odeiam, me batem. Por favor, eu tenho tanto medo!”
Jamais esquecerei o desespero
no olhar de minha mãe. Senti seus soluços enquanto me abraçava. “O que eu posso
fazer?”, balbuciava. Em menos de um minuto, minha irmã e eu estávamos
embarcando com as outras crianças. Eu fizera o impensável – quebrara o código
de silêncio. Meus amigos me olharam como se carregassem no olhar a imagem de
minha sentença de morte. Durante o mês de viagem de meus pais de navio, minha
mãe, confusa e com o coração partido, ficou tão abalada emocional e
psicologicamente que logo ao desembarcar na África foi enviada de volta aos
Estados Unidos para tratamento. Notícias de sua situação e das causas do
problema espalharam-se como fogo. Logo chegariam aos ouvidos dos dirigentes da
escola.
Eu não aguentava mais a
humilhação, que novamente aconteceria. Meu algoz esperava que em minutos eu
gritaria, choraria e lançaria a vela longe. Mas as duas afirmações –
“Ministério de seus pais arruinados” e “Africanos no inferno por causa de
Wesley” – eram mais do que eu podia suportar. Ao perceber que a cera quente
começava a pingar em minha mão, fui fortalecido de forma sobrenatural.
Rapidamente, pensei: “Posso vencer isso”. Aquele monstro havia se colocado em
uma posição que, mesmo me fazendo sofrer, me dava a possibilidade de vencer. Eu
sabia em meu coração que ele estava errado. Estava mentindo, e minha jovem alma
clamava por justiça. Eu não era uma ferramenta de Satanás; era apenas um garoto
pequeno clamando por socorro. Logo, já havia bastado de mentiras, injustiça,
dor e sofrimento. Aquilo precisava acabar – e minha decisão era a de fazer
acabar naquela hora. Nada me faria gritar ou derrubar aquela vela.
Mas estava assustado, lágrimas
furiosas escorriam dos meus olhos por causa da cera fervente que me queimava.
Ele havia me dado as costas, aumentando ainda mais o tom de suas acusações. Mas
eu não mais ouvia sua voz. Tudo o que eu ouvia era o latejar do sangue em meus
ouvidos. Trinquei os dentes, contraí os músculos e segurei aquele objeto da
forma mais firme que podia. As pontas dos meus dedos ficaram vermelhas e vi
bolhas saltando. De repente, fui transportado para fora do meu corpo. Flutuei
acima daquele menino assustado, como se aquilo estivesse acontecendo a outra
pessoa. Cheguei a ver a ponta do meu dedo acendendo com o fogo. Mas eu não
largaria a vela.
Foi quando um menino saltou em
minha direção e apagou as chamas. Galvanizadas, as crianças correram em várias
direções. A reunião macabra acabou num grande pandemônio. Sozinho naquela
cadeira, eu havia recebido meu chamado. Saí da posição de vítima e passei à
postura de vitorioso. A partir daquele dia, eu seria um protetor das crianças.
Dali por diante passaria a falar por aqueles que, como nós naquela escola por
tanto tempo, não tinham voz. Alguns anos depois, o estabelecimento foi fechado
e os que abusavam de nós foram incriminados e impedidos pela missão de
trabalhar com crianças. Não foram presos por conta da leniente legislação da
época. Muitos dos que estudaram ali comigo saíram carregando cicatrizes que
jamais seriam fechadas.
Lágrimas de alegria – O fim da
minha história, que Satanás tentou amaldiçoar, foi transformado por Deus em
bênção. Ela finalmente veio à tona com a publicação, em 2007, de meu livro Too
small to ignore – Why the least of these matter most? [em tradução livre,
“Pequeno demais para ser ignorado – Por que o menor deles é o que mais
importa?”]. Encorajado por meus editores, fiz da obra um manifesto para
despertar os cristãos quanto à necessidade do cuidado com as crianças. Ao mesmo
tempo, deixei o Senhor tratar das feridas mais profundas de minha alma. Minha
história é o que move meu coração a lutar contra a miséria, a injustiça e o abuso.
Foi isso que me trouxe à Compassion Internacional. Aquela paixão que me moveu
aos 10 anos ainda me consome. Meu trabalho é lutar pela causa das crianças,
mostrando a elas o amor de Jesus por suas vidas. Pense na minha alegria quando,
todos os dias, centenas de pequenos aceitam a Cristo como salvador de suas
vidas; ou na satisfação que sinto ao vacinarmos pela primeira vez milhares de
crianças de um recanto do mundo contra doenças fáceis de prevenir, mas até
então fatais para elas.
Nestes últimos anos, não tenho
passado dez segundos sem chorar. Nem todas as minhas lágrimas, entretanto, são
de tristeza. Tenho chorado bastante de alegria, vendo a vitória na vida de
crianças, assim como vi um dia na minha. Ao finalmente contar minha história,
pude ver algo como o outro lado do trabalho de tapeçaria. Deparei-me apenas com
os nós e tranças por muito tempo; hoje, ao contrário, vejo a bela obra de arte
feita por Deus e sua graça. Ele certamente ouviu cada um de meus clamores,
fazendo cessar meu pranto e, através do sofrimento, moldando-me para viver para
sua glória.
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